Mestre pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Gaudêncio Frigotto é dono de um olhar especialmente crítico sobre a educação brasileiras. Com mais de 30 artigos publicados e três livros já editados, volta suas críticas ao governo — em especial à política econômica. Nesta entrevista, Frigotto fala sobre o neoliberalismo na educação e de como essa política é nociva à sociedade. "O reflexo na educação é o desmonte da escola pública, com baixos salários para o magistério, escolas desaparelhadas, não construção de novas escolas. Menos de 40% dos jovens concluem o ensino médio e, dentre os que o concluem, 60% o fazem no turno noturno e, dominantemente, na forma supletiva. O ensino superior virou um grande comércio", diz.
FOLHA DIRIGIDA - Qual é o real significado do neoliberalismo? Gaudêncio Frigotto - Neoliberalismo, em sentido literal, significa um novo liberalismo. Entretanto, na prática é a volta ao liberalismo conservador do século XVIII e XIX centrado na idéia da supremacia do mercado e um mercado sem regulação, supondo falsamente a igualdade social entre as pessoas em sociedades historicamente desiguais. Essa doutrina conservadora resultou em mais desigualdade, em guerras e revoluções. A revolução de 1917 na Rússia significou, literalmente, o sinal vermelho para o sistema capitalista. Por isso, após 1920, houve uma estratégia de regulação do mercado. Henry Ford, empresário, intuiu que, para haver produção em larga escala, deveria haver consumo em grande escala. Por isso, deveria haver políticas de pleno emprego e salários que permitissem aos trabalhadores um consumo cada vez mais elevado. Keynes se constitui no teórico mais importante na formulação das idéias básicas da necessidade do Estado intervir na economia mediante planejamento e políticas de incentivo e de regulação. Algumas poucas nações no mundo, umas 20 de acordo com o historiador Eric Hobsbawm, implementaram políticas do Estado de bem-estar. Até 1970, para este historiador, o capitalismo conheceu sua idade de ouro. O neoliberalismo é a volta ao liberalismo conservador, baseado nas teses de Frederic Haiek - de que a liberdade do mercado conduz à prosperidade e as políticas sociais e de igualdade conduzem à escravidão. Por isso as palavras de ordem do neoliberalismo, na economia, são: ajuste, Estado mínimo social e Estado forte para manter superávit primário, garantia aos investidores, liberdade ao sistema financeiro. No plano geral da sociedade, inclusive na educação, as palavras de ordem são: desregulamentar, flexibilizar direitos, daí a reforma trabalhista, e, finalmente, privatizar. FOLHA DIRIGIDA - Quais são os impactos do discurso e da prática neoliberal na educação? Gaudêncio Frigotto - Inequivocamente a política neoliberal é ruim para a sociedade e para a educação. A década de 1990, sob os auspícios no início de Fernando Collor e depois oito anos de Fernando Henrique Cardoso, aplicaram a cartilha neoliberal na sociedade e na educação. Como sintetiza James Petras: tornaram o Brasil seguro para o capital. O reflexo na educação é o desmonte da escola pública, com baixos salários para o magistério, escolas desaparelhadas, não construção de novas escolas. Menos de 40% dos jovens concluem o ensino médio e, dentre os que o concluem, 60% o fazem no turno noturno e, dominantemente, na forma supletiva. O ensino superior virou um grande comércio. No âmbito organizativo interfere no desmonte da escola pública e na ampliação da privatização. Os oito anos de gestão de Paulo Renato induziram as antigas escolas Técnicas Federais e Centros Federais Tecnológicos a abandonarem o ensino médio e venderem serviços. Os coordenadores pedagógicos mudaram de nome, não graciosamente, para gerentes. No ensino superior, a farra foi total. As grandes universidades, hoje, são empreendimentos empresariais que, entre outras coisas, vendem o serviço de ensinar. Na década de 80 surgiu a universidade do gás encanado. Referência metafórica utilizada por Francisco de Oliveira, em artigo na época, para caracterizar o investimento do grupo Queirós em Fortaleza, na criação da UNIFOR. A maior universidade do país, a UNIP, investe em fazendas. Um dos donos comprou a vaca mais cara que já se vendeu no Brasil. Trata-se da universidade do leite ou fazenda. Hoje, temos empresários de transporte urbano, marmorarias, que investem no negócio do ensino superior. O reflexo mais perverso, talvez, seja a privatização do pensamento. O ideário mercantil tornou-se política oficial do estado na década de 1990, mediante a pedagogia das competências para a empregabilidade. Trata-se de convencer as vítimas do desemprego que elas são culpadas pelo mesmo, num contexto onde o desemprego aberto é de 18 a 20%. FOLHA DIRIGIDA - Um dos objetivos da educação é formar pessoas que tenham capacidade crítica e sejam criativas e transformadoras da sociedade. Acredita que o neoliberalimo impede essa realização? Gaudêncio Frigotto - A letalidade da ideologia neoliberal é educar multidões para a idéia de que não há outra alternativa senão o mercado desregulado ou autoregulado. O ideário educacional do neoliberalismo é de formar cidadãos mínimos ou o "cidadão produtivo". Aquele que acredita que cabe a ele fazer o que o mercado lhes pede. Política é para gente que entende disto. Ou seja, o neoliberalismo ajuda a formar "deficientes cívicos", como lembrava Milton Santos. FOLHA DIRIGIDA - O Brasil não possui um sistema escolar único. Aqui, temos escolas e universidades públicas e privadas, laicas e confessionais, e muitas diferenças no interior de cada uma delas. Acredita que toda essa divergência dificulta a prática de um ensino de qualidade? Gaudêncio Frigotto - Pela expansão das instituições empresariais de ensino superior, creio que essa heterogeneidade dificultou. Na realidade, muitas das instituições denominadas comunitárias e confessionais, para manterem-se, estão entrando numa lógica neoliberal. Isso tem gerado conflitos internos muito fortes face às contradições junto aos fins históricos destas instituições. Algumas tradicionais Universidades Católicas, e outras ligadas a denominações evangélicas, estão claramente numa lógica empresarial. O mesmo podemos dizer de tradicionais colégios. O espaço de alguma destas universidades abandonou os símbolos sagrados pelos símbolos do negócio privado. A gente não sabe se está entrando num shopping ou numa universidade. FOLHA DIRIGIDA - O neoliberalismo, em termos concretos, surge com a atuação de Margareth Thatcher governando a Inglaterra, na década de 80, e mais tarde nos EUA. No Brasil, veio com Collor no início de 90. Acredita que, hoje, o neoliberalismo está está indissoluvelmente impregnado na educação? Gaudêncio Frigotto - Com efeito, o neoliberalismo, em sentido amplo, chegou no Brasil com Fernando Collor que, por sua incompetência de aplicá-lo, não completou o governo. Quem o aplicou eficientemente foi o Fernando Henrique Cardoso. Na década de 90 as organizações políticas, sindicais e os movimentos sociais resistiram bravamente à implantação do neoliberalismo. Lamentavelmente, podemos dizer que transitamos da ditadura civil-militar, com seu ciclo de reformas da educação, para a ditadura do mercado. O neoliberalismo está impregnado na forma de gerir a educação e no seu conteúdo pedagógico. A pedagogia do capital, do mercado e do negócio, tornou-se, na década de 1990, em política oficial do Estado. Onde não conseguiu penetrar mais profundamente? Onde há resistência e organização? Na maioria das prefeituras geridas por governos populares o neoliberalismo encontra barreiras e propostas alternativas. É só conferir as propostas de dezenas de cidades como Porto Alegra, Caxias do Sul, Gravataí, Blumenau, Chapecó, Criciúma, São Paulo, Campinas, Guarulhos, para citar exemplos que conheço em detalhe. A ambigüidade onde se move o governo federal neste âmbito é, sem dúvida, um grande nó para uma ofensiva contra o neoliberalismo. FOLHA DIRIGIDA - Que comparação pode ser feita entre os neoliberalismos inglês e brasileiro? Gaudêncio Frigotto - Embora Margareth Thatcher tenha declarado que não via a sociedade, mas indivíduos, a doutrina neoliberal por ela difundida penetrou mais nas sociedades periféricas do capitalismo do que na Inglaterra e nos países europeus. Isto porque nestes países há sociedade organizada com mais força e tradição. Em todos os países europeus a educação básica — fundamental e média, em nosso caso — é garantida pelo Estado. As crianças e jovens têm "vida garantida" como direito até os 16 ou 18 anos. O custo aluno, que reflete a qualidade de escola que se oferece, tomando-se como base o que se estipula como política do FUNDEF é, nestes país, no mínimo 20 a 25 vezes maior. A explicação para desta diferença está na cultura de nossas elites: uma mescla do senhor de engenhos, coronel e bacharel. Temos, como lembra Francisco de Oliveira, uma elite "vanguarda do atraso e atraso da vanguarda". Associada de forma subordinada aos interesses colonizadores na suas diferentes formas históricas. A sua pátria é o capital, o lucro fácil e imediato, nem que para isso tenha que se vender o país. FOLHA DIRIGIDA - O modelo escolar de ensino que ainda existe é muito ligado ao modelo fordista de produção. No caso da estrutura neoliberal, qual seria a educação ideal para este sistema? Gaudêncio Frigotto - No Brasil convivem várias sociedades e várias economias, como nos mostram diferentes análises. Carlos Lessa mostra-nos, por exemplo, um vasto campo econômico que se desenvolve da sucata. Convivem, neste sentido, as formas fordistas de organização do trabalho com as formas comandadas pela revolução digital-molecular. Estas últimas, todavia, de forma precária e dentro da lógica da cópia. Isto nos transfor numa espécie de ornitorrinco. Um monstrengo onde convivem opulência e miséria. As 20 mil famílias mais ricas, aproximadamente 80 mil pessoas, concentram 46% de toda a riqueza nacional. Isso tem como contrapartidas: 20 milhões de Sem-Terra, 70 milhões que vivem abaixo do nível e pobreza, com baixa ou sem nenhuma escolaridade, sem documentos que os identifique e literalmente desdentados. Neste contexto, as políticas neoliberais só agravam a situação em termos econômicos e sociais e, conseqüentemente educacionais. Para o negócio do ensino esta situação é, contraditoriamente, restritiva. Por isso as empresas educacionais buscam de todas as formas fugir dos impostos ou se ancorar no fundo público por diferentes mecanismos. O Conselho Nacional de Educação tem tido, nas últimas décadas, o papel de mediar a expansão do negócio do ensino. Há hoje mudanças, mas muito menores do que o necessário. Isso revela o poder dos grupos privados em educação. A LDB é do tamanho ideal para as políticas neoliberais. Como a analisa de forma profunda Dermeval Saviani, trata-se de uma lei minimalista. Adequada ao ideário da desregulamentação, flexibilização e privatização. Onde se regulamente a lei do mais forte — no caso, do mercado do ensino e do ideário pedagógico do capital.
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